segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Quando a responsabilidade de reparar danos é do Estado

Morte e maus tratos em penitenciárias, acidente envolvendo crianças em escolas, morte de paciente no Hospital Municipal de Joinville (SC). Muitas são as atribuições do Estado, consequentemente, muitos são os resultados que podem gerar a obrigação de reparar. Essas discussões acabam sendo dirimidas no STJ. O saite do tribunal publicou ontem (22) uma matéria especial sobre o tema.A responsabilidade civil – a obrigação de reparar o dano causado a alguém – não está restrita à pessoa física. Com a formação da sociedade e, consequentemente, do Estado, não raras vezes o próprio ente público passou a ser responsável pelos danos causados. É a responsabilidade civil do Estado, o mecanismo de defesa que o indivíduo possui para assegurar que todo direito seu que tenha sido lesionado pela ação de qualquer servidor público no exercício de suas atividades seja ressarcido. O direito a esse ressarcimento está assegurado na própria Constituição Federal. O artigo 37, que vincula a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios à obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, determina literalmente que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
* Omissão também é crime
Não só a ação do agente público é responsabilidade do Estado. Esta também se caracteriza pela falta de agir do ente público. É disso que trata decisão individual do ministro Luiz Fux em um recurso (Ag nº 1192340) envolvendo pedido de indenização contra o município por danos materiais e morais, em razão de queda de placa de sinalização de trânsito, atingindo o teto de um automóvel. O ministro destacou farta jurisprudência do STJ no sentido de que, em se tratando de conduta omissiva do Estado, a responsabilidade é subjetiva e, neste caso, deve ser discutida a culpa estatal. “Este entendimento cinge-se no fato de que, na hipótese de responsabilidade subjetiva do Estado, mais especificamente, por omissão do Poder Público, o que depende é a comprovação da inércia na prestação do serviço público, sendo imprescindível a demonstração do mau funcionamento do serviço, para que seja configurada a responsabilidade”, afirma o ministro. Diferente é a situação em que se configura a responsabilidade objetiva do Estado, na qual o dever de indenizar decorre do nexo causal entre o ato administrativo e o prejuízo causado ao particular, que dispensa a apreciação dos elementos subjetivos (dolo e culpa estatal), pois “esses vícios na manifestação da vontade dizem respeito, apenas, ao eventual direito de regresso”, explicou o ministro. A seu ver, tanto na responsabilidade objetiva quanto na subjetiva deve-se ver o nexo de causalidade. Como o tribunal de origem admitiu a ocorrência de omissão do município em não fixar placa de sinalização de forma a suportar intempéries naturais, foi mantido o dever de indenizar.
* O Estado e o meio ambiente (1)
O dano ao meio ambiente também pode ser de responsabilidade do Estado, seja pela ação ou por omissão. Em um recurso da União, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e de outras empresas carboníferas (REsp nº 647493), a 2ª Turma reconheceu que a responsabilidade do Estado por omissão é subjetiva. Assim, é exigida a prova da culpa, mesmo sendo relativa ao dano ao meio ambiente, “uma vez que a ilicitude no comportamento omissivo é aferida sob a perspectiva de que deveria o Estado ter agido conforme estabelece a lei”, entendeu o ministro João Otávio de Noronha, que relatou o processo. A discussão começou em uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a União e algumas companhias de extração de carvão, bem como seus sócios. A CSN e o Estado de Santa Catarina passaram a compor o pólo passivo. O objetivo: a recuperação da região sul de Santa Catarina, atingida pela poluição causada pelas empresas mineradoras. O recurso contestava a condenação de todos os envolvidos a implementar, em seis meses, projeto de recuperação da região, com cronograma de execução para três anos, com multa mensal de 1% sobre o valor da causa no caso de atraso; obrigação de ajuste das condutas às normas de proteção ao meio ambiente, no prazo de 60 dias, sob pena de interdição. Foi concedida a antecipação dos efeitos da tutela, decisão mantida em segundo grau. O STJ concluiu existir responsabilidade solidária entre o poder público e as empresas poluidoras, ou seja: todos respondem pela reparação. A estimativa inicial do MPF era que o valor da causa alcançasse a cifra de US$ 90 milhões. O relator considerou que a União tem o dever de fiscalizar as atividades de extração mineral, de forma que elas sejam equalizadas à conservação ambiental. São partes na ação a União, o Estado de Santa Catarina, o Ministério Público Federal, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Carbonífera Urussanga, a Carbonífera Metropolitana, o espólio de Augusto Baptista Pereira, representado pela inventariante Helena Baptista Pereira Estrázulas, Nova Próspera Mineração, João Zanette e Sebastião Netto Campos.O julgado considerou também que a busca por reparação ou recuperação ambiental pode ocorrer a qualquer momento, pois é imprescritível. (REsp nº 647493).
O Estado e o meio ambiente (2)
Desde 2004, o STJ reconhece a legitimidade do MP para exigir reparação do meio ambiente. Em decisão também da 2ª Turma (REsp nº 429570), a ministra Eliana Calmon determinou que “comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la”. O caso envolvia uma ação civil pública ajuizada pelo MP de Goiás visando obrigar o Município de Goiânia a promover obras de recuperação da área degradada por erosões nas vilas Maria Dilce e Cristina, que estariam causando danos ao meio ambiente e riscos à população circunvizinha. A Turma deu provimento ao recurso, ordenando à Administração providenciar imediatamente as obras necessárias à recomposição do meio ambiente. Não apenas indústrias poluindo rios e navios petroleiros vazando óleo no mar são motivo de pedidos de indenização. O mau acondicionamento do lixo pela Prefeitura também implica o dever de reparar. Um recurso (REsp nº 699287) em cima de uma ação civil pública de improbidade ajuizada pelo MP contra o ex-prefeito acreano chegou ao STJ. A ação discutia o fato de ter sido ordenado que o lixo coletado na cidade fosse depositado em área totalmente inadequada (situada nos fundos de uma escola municipal e de uma fábrica de pescados), de modo que tal ato, por acarretar grandes danos ao meio ambiente e à população das proximidades. Por determinação do STJ, a ação contra o ex-prefeito vai prosseguir. O recurso que tramitava no STJ desde 2004 foi julgado em 2007 - mas ainda não transitou em julgado.
* O Estado e o sistema penitenciário
O sistema penitenciário brasileiro é rico em exemplos de dano causado pelo Estado. Mortes em estabelecimentos prisionais, prisão indevida, falta de condições e superlotação são alguns deles. Em 2007, 14 anos depois da chacina de Vigário Geral, o tribunal garantiu a um policial militar, preso indevidamente por mais de dois anos por suposta participação no crime, o direito à indenização a ser paga pelo Estado do Rio de Janeiro. O policial tinha sido absolvido por insuficiência de indícios de sua participação no crime sem sequer ser pronunciado em juízo. Na ação cível, o STJ - seguindo o entendimento do ministro Luiz Fux - reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado e restabeleceu a indenização fixada em sentença e posteriormente reformada em segundo grau. O policial recebeu R$ 100 mil – corrigidos monetariamente – a título de danos morais (REsp nº 872630). Também foi por prisão indevida o caso considerado o mais grave de responsabilidade civil do Estado pelos ministros do STJ. O tribunal garantiu, em 2006, uma indenização de R$ 2 milhões por danos morais e materiais a um cidadão mantido preso ilegalmente por mais de 13 anos no presídio Aníbal Bruno, em Recife (PE). Para o STJ foi o mais grave atentado e violação aos direitos humanos já visto na sociedade brasileira, um caso de extrema crueldade a que foi submetido um cidadão pelas instituições públicas. “É o caso mais grave que já vi”, assinalou a ministra Denise Arruda: “mostra uma falha generalizada do Poder Executivo, do Ministério Público e do Poder Judiciário". O valor, alto para os padrões do tribunal, foi mantido pelo STJ que considerou a situação “excepcionalíssima”, por ser um dos mais longos sofrimentos que o Estado impôs a um cidadão. Os pedidos de indenização envolvendo detentos são muitos. O STJ já firmou jurisprudência no sentido de que o dever de proteção do Estado em relação aos detentos abrange, inclusive, protegê-los contra si mesmos e impedir que causem danos uns aos outros. Conforme destaca o ministro Teori Albino Zavascki, da 1ª Turma do STJ, o dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato dos agentes estatais ou pela sua inadequada prestação de serviços públicos decorre do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988, dispositivo autoaplicável. Dessa forma, ocorrendo o dano e estabelecido o nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado e, nesses casos, o dever de ressarcir. Nesse sentido, o STJ já garantiu o direito da família à indenização pela morte de detentos tanto custodiados em delegacia quanto em penitenciárias, mesmo em caso de rebelião (Ag nº 986208), também reconheceu a legitimidade de irmã de detento morto no estabelecimento prisional para propor ação de indenização (REsp nº 1054443). Além disso, a responsabilidade civil do Estado nos casos de morte de pessoas custodiadas é objetiva, portanto, não é necessário determinar audiência para colheita de prova testemunhal cujo objetivo seria demonstrar a ausência de culpa do Estado (REsp nº 1022798).
O Estado responsável pelas crianças
As crianças são particularmente protegidas em nossa legislação. A Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente demonstram o cuidado que o Estado deve ter com esse público jovem. Quando o Estado falha em sua função, surge a responsabilidade pelo dano. A queda de uma criança de quatro anos do 3º andar de uma escola municipal obrigou o Município do Rio de Janeiro Estado a indenizar a família pela perda, tanto, materialmente, quanto moralmente, em R$ 80 mil. A menina deixava a sala de aula em fila com os demais alunos no momento do acidente e não resistiu à queda. O STJ garantiu que o pagamento fosse também a cada um dos avós da criança, assim como a seus pais (REsp nº 1101213). Para o ministro Castro Meira, relator do caso na 2ª Turma, o Direito brasileiro não especifica quais parentes podem ser afetados pela situação. A seu ver, cabe ao magistrado avaliar, em cada caso, a razoabilidade da compensação devida pelo sofrimento decorrente da morte. Por isso, os avós poderiam figurar como requerentes da indenização por danos morais. Também foi garantida pensão mensal aos pais aplicando a jurisprudência do STJ no sentido de que é devida a indenização por danos materiais em razão de morte ou lesão incapacitante de filho menor, independentemente de exercício efetivo de trabalho remunerado pela vítima. Nesses casos, a pensão deve ser fixada baseada nos limites legais de idade para exercício do trabalho e também na data provável de constituição de família própria da vítima, quando se reduz sua colaboração em relação ao lar original. Mesmo quando a morte decorre de um acidente incomum, pode ser reconhecida a responsabilidade do Estado. Para o STJ, o Estado tem responsabilidade objetiva na guarda dos estudantes a partir do momento em que eles ingressam na escola pública (REsp nº 945519). A 1ª Turma manteve a pensão aos pais de estudante morta devido à queda de uma árvore em escola pública durante uma aula de educação física.
O Estado e a saúde pública
A saúde da população também é responsabilidade do Estado. Um exemplo disso é a morte de paciente psiquiátrico no interior de um hospital público. O STJ considerou ter ocorrido falha no dever de vigiar na fuga e posterior suicídio do paciente, determinando ao Estado indenizar a família (REsp nº 433514). Para os ministros, a responsabilidade só é afastada se o dano resultar de caso fortuito ou força maior ou se decorrer de culpa da vítima. O tribunal também garantiu indenização a uma família devido ao falecimento da filha menor, que, diagnosticada por médico plantonista em hospital municipal, foi encaminhada para casa, mas, dois dias após, constatou-se erro na avaliação anterior, vindo a menor a falecer em decorrência de infecção generalizada. Este caso é oriundo de Santa Catarina e resultou na condenação do Hospital Municipal São José. (REsp nº 674586).